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quinta-feira, 5 de março de 2015

A arte de parar em pé


A arte de parar em pé

Entender a comunicação entre nervos e músculos pode auxiliar na reabilitação de pessoas com doenças neurodegenerativas
IGOR ZOLNERKEVIC | ED. 228 | FEVEREIRO 2015

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© FABIO OTUBO
Um fato curioso para refletir enquanto estiver parado, em pé, em alguma fila: sem a atividade constante de nervos e músculos, o corpo desabaria como uma marionete largada por seu manipulador. Para ficar em pé, parado, não basta que os impulsos elétricos transmitidos pelo sistema nervoso ordenem aos músculos que permaneçam rígidos o tempo todo. Se fosse assim, o equilíbrio do corpo humano seria idêntico ao de um cabo de vassoura: qualquer perturbação – a mais leve brisa ou mesmo a respiração ou os batimentos cardíacos – levaria à queda. Manter-se ereto sobre duas pernas exigiria a habilidade de um equilibrista de circo, que tem de se movimentar para lá e para cá para sustentar um prato na ponta de uma vareta. No corpo humano uma parte do sistema nervoso central ordena, de modo automático, a contração e o relaxamento coordenados dos músculos da perna, deixando o cérebro livre para prestar atenção ao ambiente ou divagar sobre esse tipo de curiosidade.
“Embora não se perceba, ficar em pé é um desafio constante para o sistema nervoso”, explica André Fábio Kohn, engenheiro biomédico da Universidade de São Paulo (USP). Kohn e seus alunos de doutorado desenvolveram um novo modelo para descrever como uma porção da medula espinhal – o tecido formado por neurônios agrupados no interior de um canal que atravessa os ossos da coluna – coordena a contração e o relaxamento de músculos situados abaixo do joelho. São esses músculos que controlam as rotações do tornozelo, impedindo que o corpo parado em pé caia para a frente ou para trás.
O modelo da equipe de Kohn demonstra que a medula espinhal é poderosa o suficiente para receber os sinais elétricos indicadores da tensão dos músculos, processá-los e enviar de volta comandos para controlar essa tensão, com pouquíssima ajuda do cérebro. “Algumas pessoas pensam que a medula espinhal é como um cabo elétrico que se conecta com o cérebro, apenas um feixe de passagem, mas essa ideia é errada. Se o cérebro é o equivalente a um supercomputador, a medula espinhal seria um computador muito bom.”
Os músculos simulados pela equipe de Kohn apresentam o mesmo padrão de atividade elétrica – uma combinação de sinais contínuos e intermitentes – que neurofisiologistas e engenheiros biomédicos observaram em experimentos recentes com seres humanos. Um músculo de ação rápida, o gastrocnêmio, que, além de manter a postura, ajuda a saltar e correr, atua de maneira mais pulsada, intermitente, ativado de uma a duas vezes por segundo. Já um músculo mais lento, mas mais resistente à fadiga, o sóleo, tende a ser ativado de maneira quase contínua. “Alguns músculos respondem de modo contínuo, enquanto outros de maneira intermitente”, diz a médica Júlia Greve, do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP. Ela pesquisa terapias que auxiliam a recuperação de pacientes idosos ou com doenças neurodegenerativas com dificuldades de realizar movimentos e de manter a postura. “O controle do sistema nervoso sobre a sensibilidade dos músculos que Kohn modelou é uma função importante para a reabilitação dessas pessoas.”
“Quando se está em pé e se inclina um pouco para a frente, os músculos da panturrilha, o sóleo e o gastrocnêmio, se contraem, enquanto o da frente da perna, o tibial anterior, relaxa”, explica Júlia. Ao contrário, a musculatura da parte anterior da perna se contrai e a da panturrilha relaxa se a tendência é cair para trás. “Esse sincronismo é modulado em um mesmo segmento da medula espinhal; o sinal que manda um músculo contrair já faz o outro relaxar.”
Ela nota que o controle desses músculos representa apenas parte do sistema de controle postural. Para manter o corpo em certa posição, cada segmento da medula precisa de uma cópia do circuito de controle do tornozelo para os demais músculos do corpo. Além disso, a medula espinhal e o córtex motor, região cerebral responsável pelos movimentos conscientes, precisam trabalhar em conjunto para integrar as informações recebidas dos nervos ligados aos músculos com as vindas da visão, do tato e do sistema vestibular do ouvido interno, que dá a referência de onde a cabeça está em relação ao restante do corpo. “Sem essa noção, caímos”, ela diz.
Depois de algum tempo parado de pé, o corpo começa a usar outras estratégias para se equilibrar. Além da oscilação do tornozelo, o quadril passa a se mover e o apoio do peso a se concentrar ora mais em uma perna, ora em outra. “O sistema de controle postural humano é um mecanismo de extraordinária complexidade”, diz o especialista em biomecânica Daniel Boari, da Escola de Educação Física e Esporte da USP. Segundo ele, cerca de 750 músculos controlam os mais de 200 tipos de movimentos independentes que o corpo é capaz de realizar. “Cada grupo de pesquisa tem um ponto de vista um pouco diferente sobre os mecanismos neuromusculares que atuam nessas situações”, diz o engenheiro biomédico Robert Peterka, da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon, nos Estados Unidos.
O engenheiro brasileiro Hermano Krebs, pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), constrói e utiliza robôs com a intenção de auxiliar a fisioterapia de pacientes que perderam parte dos movimentos por lesões no sistema nervoso. Os robôs funcionam como fisioterapeutas automáticos, corrigindo os movimentos. Krebs trabalha com a equipe de Kohn em um projeto que, se der certo, permitirá que o novo modelo computacional seja usado para orientar terapias de reabilitação. “Para melhorar a reabilitação robótica, é importante olhar o problema sob vários pontos de vista, com experimentos e simulações”, diz ele.
“Não basta ser bom em matemática e computação para fazer esses modelos; é preciso estudar fisiologia e conhecer os trabalhos experimentais, de modo a melhorar a intuição sobre o problema”, diz Kohn. Ele começou a pesquisar a fisiologia do sistema nervoso ainda na graduação em engenharia elétrica na Escola Politécnica da USP, no final dos anos 1970. A origem de seu modelo para o controle da postura ereta remonta a 1994, quando passou um ano em um laboratório dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Ali, ele aprendeu a usar medições da atividade elétrica de nervos e músculos, registradas por eletrodos colocados na pele de voluntários, para deduzir por quais circuitos de neurônios os sinais elétricos são processados na medula espinhal.
Esses e outros experimentos revelaram que os neurônios não são simples elementos de circuitos elétricos que funcionam regularmente como relógios. Eles disparam sinais elétricos de forma abrupta e aleatória, que se refletem no movimento do corpo. Mesmo quando um soldado treina para marchar com passos regulares, há uma pequena variação no comprimento de seus passos. Mas, paradoxalmente, o movimento contínuo e suave de um músculo decorre da ação conjunta das centenas de neurônios ligados às fibras musculares, que, disparando de forma aleatória e levemente dessincronizada, suavizam a ação uns dos outros.
Combinando dados de seus experimentos e dos de outros pesquisadores, Kohn e Rogério Cisi, então seu aluno de doutorado, criaram em 2008 um modelo em computador da medula espinhal e de neurônios envolvidos no controle muscular. “Esse é o núcleo de nosso novo modelo”, explica Kohn. Em 2013, com dois outros doutorandos, Leonardo Elias e Renato Watanabe, ele expandiu o modelo de Cisi ao incluir descrições detalhadas dos músculos responsáveis por manter o tônus do tornozelo. O modelo leva em conta, por exemplo, órgãos sensitivos dos tendões e ligações entre fibras musculares e neurônios chamados de fusos musculares, que agem como sensores e informam ao sistema nervoso sobre o alongamento e a força sentida pelos músculos.
“Estamos cientes das limitações do modelo”, diz Kohn, reconhecendo a forma simplificada com que trata os elementos do sistema motor. Os dendritos, o corpo celular e o axônio de cada neurônio são representados por circuitos elétricos que incluem aspectos dinâmicos do funcionamento neuronal, o que permite reproduzir de modo mais realista a atividade de neurônios reais. A complexidade do entrelaçamento dos neurônios e das células musculares é também reduzida. Mas a simplificação mais radical é a do corpo humano como um todo, representado por uma barra fixa ao chão por uma junta móvel, que faz o papel do tornozelo. Nesse modelo, conhecido como pêndulo invertido, a barra permanece em pé pela ação compensatória do sóleo, do gastrocnêmio e do tibial anterior. “É simplificado, mas não é simples”, afirma Kohn sobre o modelo, que inclui a representação de milhares de neurônios e de 1 milhão de conexões (sinapses) entre eles em 5 mil equações matemáticas.
As simulações sugerem que o processamento de informação feito na medula espinhal consegue manter uma pessoa em pé por ao menos 30 segundos e com características parecidas com as de seres humanos saudáveis. De acordo com o modelo, a porção superior do sistema nervoso central, que inclui o cérebro, auxilia a atividade da medula ao enviar um sinal elétrico especial. “Imitamos como o sistema nervoso central, particularmente a medula espinhal, tenta processar, grosso modo, as respostas dos sentidos envolvidos em certo movimento”, diz Kohn.
“Acredito que Kohn tem o melhor modelo para representar o circuito entre a medula espinhal e os músculos”, diz Krebs, que planeja usar esse modelo às avessas. Seus robôs medem com precisão variações na estabilidade do tornozelo de uma pessoa em pé – essa estabilidade muda após um acidente vascular cerebral (AVC), porque os sinais enviados à medula espinhal diminuem. “Com menos sinal descendo, certas partes do tornozelo param de responder, já outras respondem de maneira mais ativa”, diz Krebs. “Quero fazer o inverso: colocar no modelo medidas da rigidez do tornozelo e usá-lo para descobrir como é o sinal enviado pelo cérebro à medula.”
Seria possível usar o modelo para uma terapia robótica ou projetar uma prótese que melhorasse o sinal elétrico emitido pelo cérebro de alguém com AVC? Ainda não, segundo Kohn. O maior problema é que o modelo tem muitas variáveis e, embora aja de modo natural, ainda não se entende como cada parte interage com outra. “Atualmente, o uso clínico é inviável”, admite Kohn. Krebs é mais otimista. “Cada vez que encontro Kohn, sua equipe está mais próxima dessa possibilidade.”

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